segunda-feira, 17 de abril de 2017

Paralisia da insônia

Todo mundo já procrastinou alguma vez na vida sobre alguma coisa. Na verdade podemos realizar esse pecado capital moderno algumas vezes durante o dia, todos os dias, e ainda continuarmos sendo cidadão exemplares dentro dos parâmetros da exigente máquina de produção na qual estamos inseridos. Porém sempre há o risco de cair em um ciclo onde esse processo não seja mais agudo, mas crônico, nos levando ao que vou chamar de Paralisia da Insônia só para ilustrar de maneira fácil de lembrar.

Você faz sua lista de tarefas para o feriado de três dias: um exercício de língua estrangeira, a revisão de um conto, o estudo de uma matéria, três textos para ler, dois resumos, um questionário. . . Logo sua página está inteira preenchida e você se lembra de que tem uma família para dar atenção, um jogo que adoraria retomar, uma série para assistir, aquele encontro com amigos que já estava marcado há dois meses. . . Você então entra em pânico.

Aproveitar o feriado se torna um massacre e trabalhar sem parar nos seus afazeres também, pois você está negligenciando sua família, cachorro, tamagochi ou seja lá o que for. É uma situação onde você perde ou perde. E daí você escolhe a "terceira via duvidosa": não fazer nenhuma coisa, nem outra. Você entra na Paralisia da insônia.

Procrastinar gera uma sensação de culpa que é difícil de engolir. Porém não somos máquinas guiadas por um programa de computador que leva em consideração as prioridades pragmáticas. Lembramos à todo momento que somos humanos, que (talvez) nos amemos e queiramos nos proporcionar algum tempo de prazer nos raros momentos em que não somos impelidos para o trabalho, estudo, ou qualquer outra obrigação para convívio dentro da sociedade que tenhamos. Queremos ter a ilusão de ser livres e ter escolhas sobre nossa rotina, mas esse desejo não é capaz de desligar o senso de dever e culpa que esse prazer "mundano" trás.

Sem alternativa, nos tornamos como vegetais, incapazes de fazer uma coisa ou outra. Nos escondemos de tudo em aplicativos, em navegação inútil ou em algum livro que nem temos mesmo interesse em ler, só estamos usando de escudo para encarar os fatos.

Assim, uma lista de tarefas se torna uma bomba que explode no nosso colo nos tornando incapazes de dormir, de nos divertir, de nos sentir satisfeitos com os três dias de descanso proporcionados pelo feriado que nem sabemos o sentido. Estamos paralisados, insones, frustrados e irritados. Escrevemos um texto para fingir que superamos tudo, mas na verdade temos toda aquela lista nos esperando, pronta para nos degolar na manhã seguinte.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Nada Pessoal


Abstrair conceitos da realidade é parte da nossa rotina. Abstraímos lugares para assim os conhecer; abstraímos acontecimentos e fazer relações que escapam do óbvio. É assim que compreendemos o mundo. Porém existe um tipo de movimento de abstração que é ao mesmo tempo necessário e perigoso:  somos capazes de separar o conceito das pessoas de quem elas realmente são.

Quem nunca ouviu a frase “não leve isso para o pessoal” após receber alguma ofensa que com certeza já lhe tirou da seriedade de ânimos? Dia desses descobri que uma antiga amizade com a qual tinha contato atualmente só pela internet havia perdido o interesse no nosso vínculo e me excluído de suas redes. Não leve para o pessoal, ela disse em seu perfil, após ter feito a operação com várias pessoas além de mim, é que quero que minhas atualizações mostrem apenas coisas que me sejam de interesse.

E pra que lado eu poderia tomar aquele que não o pessoal? Havíamos trabalhado juntas em projetos artísticos, em um grupo que havia sido quase uma segunda família para os membros naquele ano. Agora que meu contato não era mais interessante era algo nada relacionado ao pessoal sair excluindo à mim e a outros colegas do mesmo período?

Abstraímos pessoas o tempo inteiro, tornando-as conceitos com os quais lidamos de maneira mais simples do que lidaríamos com essas massas de carne e incredulidade tangível da qual surgem essas abstrações. Precisamos simplificar e agrupar algumas vezes para entender como devemos nos comportar em determinadas situações. Pessoas da empresa, colegas da faculdade, amizades da época da escola. . . Criamos grupos conceituais e encapsulamos os outros modelos metafóricos que representam vagamente as pessoas com quem convivemos.

Ninguém faz isso com o objetivo de ser frio simplesmente. É que somos incapazes de dar total atenção para cada uma das pessoas que estão em nosso convívio. Nossa consciência é incapaz de suportar a quantidade de informação necessária para ter uma visão complexa e completa de cada um dos vizinhos, dos clientes do lugar onde se trabalha ou de alunos das ênfases mais desconhecidas da Letras. Precisamos desse espaço precioso de raciocínio para trabalhar outras coisas inúmeras que nos assaltam a todo o momento. A música na playlist do celular, ou o tamanho da fila do R.U. precisam de espaço e para isso simplificamos aquelas centenas de pessoas enfileiradas à um grupo sem distinção que está tornando nosso horário de almoço mais caótico.

Tornar pessoas coisas com as quais não fazemos relação ao lado pessoal é também perigoso. Todos se tornam coisas e coisas podem ser colocadas de lado com facilidade. Tratadas como quantidades ou apenas como acúmulo de espaço.

No fim eu também excluí aquela antiga grande amiga de projeto do meu feed do Twitter e do Facebook. Não quero gastar meus olhos lendo suas opiniões inconstantes ou vendo suas divulgações de projetos que não me interessam. Não é nada pessoal, eu só quero poder deletar a abstração dela da minha realidade.