terça-feira, 7 de novembro de 2017

Mundo Cyberpunk

O Cyberpunk não morreu, ele virou nosso café da manhã todos os dias quando abrimos os jornais virtuais.

O mundo vai ser destruído pela histeria. Vivemos na Era da Histeria, sucessora maléfica da Era da Informação. Neste momento utilizamos todos os meios de alta-tecnologia desenvolvidos até então para gerar ondas de ódio e reações descomunais pela menor das coisas. Não existe mais uma satisfação do Eu que não seja o Eu Virtual. Todos são avatares de si mesmos, alguns com o próprio nome e foto, outros com imagens de quaisquer naturezas e nomes de qualquer origem que lhe agrade mais do que o da sem graça realidade.

O conceito de realidade e de vida se tornou obsoleto. Realidade é uma mensagem de internet, vida é o tempo que você desprende consumindo a avalanche interminável de conteúdo supérfluo que te deixa feliz e anestesiado das ondas de histeria. Para sobreviver é preciso enlouquecer e matar por qualquer coisa estúpida como opinião.

A maioria das pessoas vive conectada. Seus rostos estão vazios enquanto elas olham para o buraco infinito na palma da mão. A Internet. São capazes mesmo de esquecer do que acontece ao redor, das pessoas ao redor, e muitas vezes o fazem propositalmente para anular qualquer sentimento que a realidade imediata possa lhes trazer. Esquecer-se é o mais importante. Esquecer-se de quem é, de onde vive, das suas falhas, dos seus sucessos. Esqueça de tudo, viva quatrocentas e cinco vidas diferentes nestes nossos quatrocentos e cinco sites/jogos/mmos/redes distintos! Seja o que você jamais poderia ser, de graça! Claro que para os assinantes premium tudo isso será liberado, sem propagandas!
Os dias passam, os meses passam, os anos passam. Por mais que sejamos obcecados pelo buraco infinito da Internet nossos cérebros e corpos foram feitos para um mundo de carne e osso. Não percebemos o tempo no digital. Ontem parece hoje, dez anos traz é mais longínquo do que a Primeira Guerra Mundial. Criamos novas possibilidades de guerras porque estamos entediados, porque nosso ego fraco é massageado todas as vezes que alguém curte uma postagem nossa.

Desplugar parece impossível, inviável. Ninguém pode viver sem informação. Como o dia de alguém poderia estar completo se essa pessoa não ver a última da última selfie publicada por aquela idol lindinha na rede? Essencial. Ler todas as traduções oficiais e piratas dos conteúdos especializados que tanto se cultua. Imprescindível. Ver o mais novo ataque de ódio ao estilo medieval vindo de pessoas que nunca ouviram falar da palavra empatia. Sim, sem isso não daria para viver.

Ninguém propaga o amor, só o ódio. O ódio contamina, se espalha e nos devora antes que sejamos capazes de enxergar o que estamos fazendo. Nos tornamos zumbis da rede e zumbis do ódio. Odiamos o filme novo da DC, odiamos quem odeia o filme novo da DC. Odiamos os odiadores que odeiam pessoas que só não queriam ser odiadas por serem que são. . . Há regras para todos os lados. Seja isso, seja aquilo, não seja um devorador de criancinhas. . . Penso que cabeça terão as tais criancinhas, crescendo nesse mundo de gente que tem mais medo de gente do que gente tinha medo de pecado na tal Idade Média.

Talvez pareça impossível se desplugar, mas falando por experiência digo que é a melhor coisa. Talvez seja impossível mesmo escapar desse mundo cyberpunk que nos vem à mesa todos os dias, mas alguém tem que ser da Resistência e, para isso, basta vencer o medo do silêncio absoluto de estar sozinho num mundo onde até pensamentos já nascem em bytes.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

[Conto] A Primeira nota

Link para leitura no Wattpad: (em breve)





O tempo passara sem que ela tivesse notado. Os sonhos tinham se tornado apenas vontades não realizadas e as esperanças foram sufocadas pela rotina e as obrigações que ela nem sabia mais se eram realmente necessárias.

Estava com trinta e cinco, morando em um apartamento pequeno dividido apenas com seu gato, Nícolas. Assistia TV a cabo nos fins de semana, mas muitas vezes terminava por ver filmes repetidos por não estar prestando atenção o bastante no que via até a cena final. Visitava a casa dos pais uma vez por mês e sempre ignorava as perguntas sobre casamento ou filhos. Se nem a si mesma tinha tido sucesso em conhecer, como poderia pensar em conhecer outra pessoa ou criar uma nova vida? Nícolas era possessivo demais para deixar-lhe ter esse tipo de liberdade.

O choque de realidade lhe ocorreu em uma manhã de sábado, ao acordar bruscamente de um pesadelo qualquer. Seu coração disparava e o silêncio do seu quarto, iluminado pela luz que atravessava a persiana foram as únicas testemunhas daquele instante de revelação.

Quem ela era? O que ela deveria ser?

Tinha certeza de que em algum lugar de um passado já muito distante ela tivera sonhos, vontades e anseios para o futuro. Se soubesse naquela época que terminaria daquela maneira medíocre talvez não tivesse sido tão doloroso. Havia sido doloroso? Já nem lembrava mais.

Talvez tivesse algo haver com arte. Adolescentes sempre colocam na cabeça que podem ser grandes artistas e que isso irá mudar não só suas vidas como todo o Universo. Tolices que só nos damos a chance de pensar quando ainda não temos que pagar nossas próprias contas ou temos que enfrentar um rotina de escritórios abafados e com pessoas cheias de rancor afim de destruir uns aos outros.

Talvez tivesse algo haver com arte. Mas que arte? Não lembrava de desenhar alguma vez fora das aulas do Fundamental. Teatro? Logo alguém sem qualquer vontade de se expressar? Música. . . Sim, poderia ter haver com música. Affe, qual era o sentido de se debater com o que havia ficado para trás?

Sentou na cama e ligou a televisão. Passou vários canais e seus dedos distraídos congelaram quando passou por um dos canais de filme de sempre. Não fora a imagem a responsável por seu estupor, mas a melodia dramática que acompanhava a cena.

O som límpido do clarinete soava em destaque e aquilo levou lágrimas ao seu rosto antes que fosse capaz de perceber. Havia embarcado em uma máquina do tempo antes que fosse capaz de deter-se.

A apresentação da banda da escola na entrada do Médio. Havia uma moça de óculos redondos, cabelos crespos presos em tranças grossas. Ela tocava o clarinete e era tão lindo. . . Tinha tentando encontrar aquela outra aluna por todos os três anos, mas só havia tido sucesso uma vez que vira a tal aos beijos com um rapaz corpulento, talvez do segundo ano.

Não valia a pena insistir. Nem no clarinete, nem na tocadora de clarinete. Aquele fora o fim do seu curto sonho de ser algo além de uma pessoa qualquer.

Lembrava de ter pensado em entrar para aulas quando estava na faculdade. Mas o medo de falhar, de não ser boa o bastante, de ser criticada pelos pais, pelos amigos. . . Aquilo era demais. Além do mais uma mulher de dezoito anos já era velha demais para começar algo daquele estilo. Não tinha nascido com o dom. Se tivesse com certeza teria sido descoberto, por algum milagre, já que nunca havia sequer segurado um instrumento de sopro nas mãos durante a vida.

Aquilo já fazia tanto tempo, pensou ao retornar à realidade. Era tão pequeno e estúpido e ainda assim havia sido sua única esperança. Esperança que havia sido varrida completamente junto com a necessidade de largar Jornalismo para trabalhar em período integral.

Naquela tarde não ficou em casa vendo reprise de As Branquelas.

Foi para o centro da cidade e caminhou sem muita intenção. Seus pés sabiam onde queriam ir e assim ela se viu diante de uma loja de eletrônicos de instrumentos. Havia um clarinete na vitrine.

Tinha algum limite disponível no cartão, o suficiente para comprar o instrumento. Mas para quê? Começar a tocar clarinete com trinta e cinco anos? Perturbar os vizinhos de cima e do lado com notas desafinadas e receber uma advertência do síndico? Provavelmente Nícolas iria ficar irritado com o som, afinal tinha um gosto muito mais refinado do que ela.

Idiotice. Era impossível. Tirou-se dali e seguiu sem um rumo. Não iria se deixar levar por um par de pés que não sabia os limites do razoável.

Comeu numa cafeteria elegante e então passou por duas livrarias de rede que nem lembrava existirem. Folheou algumas coisas sobre música, sem qualquer motivo, e retomou a caminhada. Sentia-se uma estranha na sua própria cidade. Não parecia reconhecer nenhum lugar e todas as esquinas continham surpresas. Quando menos percebeu estava na frente do prédio que abrigava a escola de música da orquestra municipal.

Estavam com inscrições abertas. O valor era bem abaixo do mercado (sem intenção havia reparado nos cartazes de outras escolas). A secretaria estaria funcionando ainda por meia hora. Apenas meia hora para resistir à tentação de tomar uma atitude estúpida.

Não tinha motivos para tentar. Não tinha qualquer esperança de que aquilo fosse dar em alguma coisa. Por que não se virava e ia embora? Sim, ia fazer isso.

E fez. Virou de costas e começou a se afastar. Porém as portas da escola se abriram e as vozes entusiasmadas lhe chamaram a atenção. Ela se virou.

Um grupo de cinco jovens falava animado, acompanhando uma mulher mais velha. Levavam cases nas mãos e a mulher parecia comentar suas impressões sobre as performances da aula recém-terminada.

Óculos redondos. Cabelos crespos curtos ao redor da cabeça. Era como um delírio muito real. Uma miragem legítima. Ainda que fosse apenas uma mentira, era tudo o que precisava para mudar a direção de seus passos.

Quinze minutos deveriam ser suficientes para realizar uma matrícula.