sexta-feira, 20 de outubro de 2017

[Conto] Traços no chão

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Verônica não precisava de muita coisa para ser feliz. Um pedaço de giz branco ou rosa era o bastante. Ela traçava linhas compridas e tortas no pátio de cimento puro e fazia desenhos sobre alguns lugares.

Uma ondinha pra cá, uma ondinha pra lá. Uma volta aqui, uma volta ali. Pronto, estava marcado o território mais perigoso.
"Menina, vem almoçar!" Chamava sua mãe.

"Shh, você vai acordar os Marci-peronautas!" Alertava Verônica, se abaixando para se esconder dos terríveis alienígenas.

Donos de boa parte do centro do pátio, os marci-peronautas não eram nada amigáveis. O importante era caminhar bem quietinha para que não ouvissem seus passos, senão. . . Bom, aí teria problemas. Porém o risco sempre valia a pena quando Verônica lembrava que depois dos enormes domínios do marci-peronautas estava o reino dos Pôneis, onde a diversão era garantida e o sol era tapado pelo muro de trás do quintal.

Toda essa encrenca poderia ser evitada se ela entrasse pelos Labirintos Óptico-Finais, mas isso sempre acabava em uma briga feia, pois os anões do labirinto sempre lhe seguiam para chegar ao reino dos pôneis, para roubar tudo. Quando estava sem paciência para andar em silêncio, Verônica deixava que o caos se instaurar.

Afinal, quando as coisas ficassem mesmo bagunçadas ela sabia que os nobres heróis-peixe iriam vir saltitando com suas carruagens puxadas por cavalos-marinhos mágicos de dentro da floresta de NuíNuin (que ficava em algum lugar secreto atrás do pé de carambola).

Assim eram os dias de Verônica, vivendo essa constante disputa de reinos mágicos rivais. Por sorte havia escapado inteira sempre.

Sua vida de grande aventuras terminou quando se mudaram daquela casa para um apartamento no centro da cidade. Fora apenas ela e sua mãe, o que fizera Verônica se perguntar se seu pai havia decidido tomar seu lugar como embaixadora das nações do quintal. Para sua surpresa, quando foi visitá-lo, ele também não estava mais na casa.

Verônica passou muito tempo pensando se as coisas haviam ficado em paz entre anões e pôneis. Se os marci-peronautas tinham mostrado enfim seu poder e dominado todo o pátio. Aquilo era tão preocupante que ela chegou a escrever algumas cartas de aconselhamento político para os diferentes reinos. Mesmo sua mãe tendo ficado encarregada de levar os documentos diplomáticos, a verdade é que nenhuma resposta chegou. Era possível que o inverno gélido das montanhas ao sudoeste das florestas dos heróis-peixe tivesse impedido a saída do mensageiro.

O tempo foi passando e Verônica foi esquecendo do pátio. A escola ocupava cada vez mais espaço em sua vida e a ignorância de seus amigos em relação aos marci-peronautas havia deixado de irritá-la para apenas lhe fazer parar de insistir no assunto.

Estranhamente não houve nenhum inverno desde que ela saíra de perto dos reinos do pátio. Era sempre quente, sempre. Equatorial úmido, dizia a professora e os livros da quinta, sexta, sétima e oitava. Verônica percebeu naquele natal que nunca havia visto neve.

Os assuntos das amigas se tornaram seus assuntos. Ouviu as músicas delas, viu os filmes delas, sonhou com os garotos do Terceirão, assim como elas. Ainda que se divertisse, Verônica sentia-se cada vez mais parecia com os outros e mais diferente de si mesma.

E quando viu o mundo havia se tornado todo igual e ela igual a todos. Que lugar chato, vamos sair e beber na sexta-feira. Não posso, tenho que terminar um trabalho da facul. Que isso, o pessoal do escritório vai fazer um happy hour e o chefe não vai. Mas minha mãe está no hospital, é a idade. Na verdade eu agora moro sozinha e às vezes visito meu pai. A minha madrasta vive querendo saber quando vou casar. Vamos sair e beber de uma vez.

Não parecia haver nada capaz de divertir Verônica depois de um dia monótono e estressante de trabalho. Nem bebida, nem jogos, nem conversa fiada com as amigas pelo whatsapp. Tinha como ser diferente?

Uma ondinha pra cá, uma ondinha pra lá. Uma volta aqui, uma volta ali.

"Que pixação estranha essa." Comentou o colega de serviço, vendo que Verônica havia parado para olhar a parede coberta de cartazes de shows sobrepostos uns sobre os outros.

Verônica não respondeu nada. Por segurança, se afastou dali em silêncio. Algo dentro do peito chiou. Alguma coisa parecia uma pista de algo que ela não lembrava mais.

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