sexta-feira, 27 de outubro de 2017

[Conto] Um motivo qualquer


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"Eu canto porque o instante existe"
o 20 o - 556 h e d f 123 az
"E minha vida está completa."
h 11 G J B 5 5 67sE e a !H
"Não sou alegre, nem sou triste"
P m 4 h 56764 gFy2 a 4 00 0 1 22
"Sou poeta."

Agnus piscou uma, duas, quatro e seis vezes antes de enfim reconhecer o estranho padrão infiltrado em meio a comunicação. Fazia tanto tempo, mas tanto tempo que ele não via algo daquele tipo que, num primeiro momento, lhe soou como algo aleatório, solto. Um ruído de fundo na informação que realmente lhe era importante. Afastou-se do deck para observar melhor aqueles caracteres:

"Algum problema aí? " Perguntou Valkyria, sentada em uma poltrona logo ao seu lado. "Parece ter visto um fantasma na rede, Ag."

O homem voltou seus olhos para a piloto. Sua mente só então começou a absorver os sons ao redor. A música agitada vinda dos alto falantes nos decks auxiliares. O zunido constante do hyperespaço. Ele olhou para frente e viu, logo após o para-brisa blindado distorções coloridas com padrões absurdos.

De fato, ele estava viajando em um cruzador em dobra espacial:

"Não foi nada, eu só. . . " Ele começou, com a garganta seca. "Me distraí com alguns fantasmas. "

"Você está pálido, cara. " Falou a piloto, meio humana, meio andróide, de pele azulada e traje roxo colado ao corpo. "Talvez esteja exagerando nos estimulantes."

"Talvez. . ." Admitiu Agnus. "Tenho dormido pouco. "

Atrás dele um rapaz sardento observava curioso. Apesar da aparência juvenil ele tinha a idade somada de Agnus e Valkyria:

"Que fantasma foi esse? " Perguntou ele, a voz oscilando de tom. "Alguma informação útil?"

"Não mesmo. Foi só que. . . Era algo parecido com a minha língua original."

Valkyria assoviou:

"Que sinistro. Ninguém fala essa língua fora daquele buraco que você nasceu, Ag. Não tem como ter algo escrito naquele código arcaico estar infiltrado nos dados bidimensionais. "

"Mas, mas. . ." Interveio o rapaz de voz complicada. Seu nome era Laius. "Mas e se for realmente um fantasma? E se alguém está usando essa língua para transmitir algo secreto. Pode ser vantagem que o Agnus consiga ler essa informação sigilosa pra nós. "

"Não tinha pensado nisso, mas parece razoável. " Concordou a piloto, esboçando um sorriso de ganância. "O que cê acha, Ag? É algo que pode ser útil?"

Agnus olhou novamente para seu deck. Havia mais coisas infiltradas nos dados. Ele leu e releu algumas vezes as informações naquela língua a tanto deixada pra trás. Que sentimento estranho. Por um instante ele sentiu-se de volta ao litoral de um planeta insignificante, numa outra galáxia tão insignificante quanto possível:

"Se isto tem um motivo, não acredito que seja algo especial. São frases soltas e elas mal fazem sentido. " Ele disse, depois de analisar aquilo mais algumas vezes.

"Pena. " Disse Laius. "Eu me diverti com a ideia de um código em língua arcaica por um momento. "

A viagem seguiu sem maiores problemas, porém Agnus não conseguiu mais esquecer aqueles códigos. Frases mais sem sentido. Não era a toa que ninguém nesta galáxia tinha ouvido falar do tal Português.

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"Sei que canto. E a canção é tudo."
S F 6 778 9897 dfs ¨D¨7%$
"Tem sangue eterno e asa ritmada."
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"E um dia sei que estarei mudo:"
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"mais nada."

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

[Conto] Traços no chão

Link para leitura no Wattpad: https://www.wattpad.com/484534022-tra%C3%A7os-no-ch%C3%A3o



Verônica não precisava de muita coisa para ser feliz. Um pedaço de giz branco ou rosa era o bastante. Ela traçava linhas compridas e tortas no pátio de cimento puro e fazia desenhos sobre alguns lugares.

Uma ondinha pra cá, uma ondinha pra lá. Uma volta aqui, uma volta ali. Pronto, estava marcado o território mais perigoso.
"Menina, vem almoçar!" Chamava sua mãe.

"Shh, você vai acordar os Marci-peronautas!" Alertava Verônica, se abaixando para se esconder dos terríveis alienígenas.

Donos de boa parte do centro do pátio, os marci-peronautas não eram nada amigáveis. O importante era caminhar bem quietinha para que não ouvissem seus passos, senão. . . Bom, aí teria problemas. Porém o risco sempre valia a pena quando Verônica lembrava que depois dos enormes domínios do marci-peronautas estava o reino dos Pôneis, onde a diversão era garantida e o sol era tapado pelo muro de trás do quintal.

Toda essa encrenca poderia ser evitada se ela entrasse pelos Labirintos Óptico-Finais, mas isso sempre acabava em uma briga feia, pois os anões do labirinto sempre lhe seguiam para chegar ao reino dos pôneis, para roubar tudo. Quando estava sem paciência para andar em silêncio, Verônica deixava que o caos se instaurar.

Afinal, quando as coisas ficassem mesmo bagunçadas ela sabia que os nobres heróis-peixe iriam vir saltitando com suas carruagens puxadas por cavalos-marinhos mágicos de dentro da floresta de NuíNuin (que ficava em algum lugar secreto atrás do pé de carambola).

Assim eram os dias de Verônica, vivendo essa constante disputa de reinos mágicos rivais. Por sorte havia escapado inteira sempre.

Sua vida de grande aventuras terminou quando se mudaram daquela casa para um apartamento no centro da cidade. Fora apenas ela e sua mãe, o que fizera Verônica se perguntar se seu pai havia decidido tomar seu lugar como embaixadora das nações do quintal. Para sua surpresa, quando foi visitá-lo, ele também não estava mais na casa.

Verônica passou muito tempo pensando se as coisas haviam ficado em paz entre anões e pôneis. Se os marci-peronautas tinham mostrado enfim seu poder e dominado todo o pátio. Aquilo era tão preocupante que ela chegou a escrever algumas cartas de aconselhamento político para os diferentes reinos. Mesmo sua mãe tendo ficado encarregada de levar os documentos diplomáticos, a verdade é que nenhuma resposta chegou. Era possível que o inverno gélido das montanhas ao sudoeste das florestas dos heróis-peixe tivesse impedido a saída do mensageiro.

O tempo foi passando e Verônica foi esquecendo do pátio. A escola ocupava cada vez mais espaço em sua vida e a ignorância de seus amigos em relação aos marci-peronautas havia deixado de irritá-la para apenas lhe fazer parar de insistir no assunto.

Estranhamente não houve nenhum inverno desde que ela saíra de perto dos reinos do pátio. Era sempre quente, sempre. Equatorial úmido, dizia a professora e os livros da quinta, sexta, sétima e oitava. Verônica percebeu naquele natal que nunca havia visto neve.

Os assuntos das amigas se tornaram seus assuntos. Ouviu as músicas delas, viu os filmes delas, sonhou com os garotos do Terceirão, assim como elas. Ainda que se divertisse, Verônica sentia-se cada vez mais parecia com os outros e mais diferente de si mesma.

E quando viu o mundo havia se tornado todo igual e ela igual a todos. Que lugar chato, vamos sair e beber na sexta-feira. Não posso, tenho que terminar um trabalho da facul. Que isso, o pessoal do escritório vai fazer um happy hour e o chefe não vai. Mas minha mãe está no hospital, é a idade. Na verdade eu agora moro sozinha e às vezes visito meu pai. A minha madrasta vive querendo saber quando vou casar. Vamos sair e beber de uma vez.

Não parecia haver nada capaz de divertir Verônica depois de um dia monótono e estressante de trabalho. Nem bebida, nem jogos, nem conversa fiada com as amigas pelo whatsapp. Tinha como ser diferente?

Uma ondinha pra cá, uma ondinha pra lá. Uma volta aqui, uma volta ali.

"Que pixação estranha essa." Comentou o colega de serviço, vendo que Verônica havia parado para olhar a parede coberta de cartazes de shows sobrepostos uns sobre os outros.

Verônica não respondeu nada. Por segurança, se afastou dali em silêncio. Algo dentro do peito chiou. Alguma coisa parecia uma pista de algo que ela não lembrava mais.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

[Conto] Telefone




Raquel estava na sala de casa. Agulhas nas mãos e tutorial no Youtube, ela aprendia a dar os primeiros pontos apenas para preencher o tempo excessivo que tinha. O filho não estava em casa e ainda era muito cedo para fazer o jantar.

Foi então que o telefone tocou.

O telefone, uma bela peça dos tempos de seus pais. Verde lima, com números dispostos em círculo com um discador de plástico por cima. Detalhes metálicos e um fio grosso marrom ligavam aparelho e gancho. Ele estava disposto no canto do balcão antigo, logo do lado de um porta-retratos.

Ele tocava. Raquel pausou o vídeo no smartfone e foi até o ancestral telefone de disco. Um soar alto e estridente que não se poderia ignorar vinha do aparelho. Autêntico toque que lembrava desde a época que era uma menininha, na casa de sua avó Cida.

Atendeu:

"Oi, amor. Que demora pra atender." Reclamou uma voz especialmente familiar.

― Borges? ― Raquel perguntou, sabendo ser ele.

"Sim, eu." Respondeu o marido. "Escuta, amor. O Alceu vai me liberar mais cedo hoje. Tô ligando pra dizer que eu adoraria se você fizesse aquele camarão com massa que é sua especialidade. Quero aproveitar nosso tempo juntos de uma maneira especial."

Raquel ouvia a voz do marido enquanto contemplava seu rosto no porta-retrato ao lado do telefone. Uma foto das antigas, que máquina de filme,  um homem de rosto magro e cheio de energia nos seus trinta e poucos anos:

"Agora tenho que voltar ao trabalho. Até mais tarde, meu bem." Despediu-se ele, desligando a seguir. Os tons da linha cortada ficaram martelando na cabeça de Raquel durante um tempo até que ela deixou o gancho de lado, pendurado para fora da mesa.

Esse Borges. Sabe que é alérgico a camarão e mesmo assim sempre está se arriscando. Era sempre um problema. Volta e meia iam parar em uma emergência porque o marido comia algo na volta do trabalho e chegava todo embolotado em casa.

Claro que ela não ia fazer o prato, claro. Ainda assim arrumou a bolsa e catou o celular de cima do sofá. Tinha algo à fazer agora, e talvez fosse uma boa passar no consultório da Rosângela na volta, apenas para dizer que estava indo tudo bem.

No corredor para a saída, Raquel olhou na direção do quarto do filho. A porta estava aberta. Sorriu e saiu, mas não sem antes mandar uma mensagem para a secretária da terapeuta.

A casa ficou em completo silêncio. Desde o segundo quarto, sempre de porta aberta para o vazio do seu interior, sem qualquer móvel ou decoração, até a sala e seu antiquado cantinho de velharias.

A secretária teria ligado para a casa para avisar que não tinham como encaixar uma consulta em cima da hora, porém o telefone do consultório não conseguia ligar para celular e na ficha de Raquel não constava nenhum número fixo.

Nos tempo de smartfone, ninguém mais tinha um telefone funcionando em casa. Nem mesmo a viúva e aposentada precoce. O aparelhos de antigamente haviam se tornado peça de decoração. Como aquele verde e marrom, enfeitando ao lado do último retrato do falecido.