segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Até onde “Literatura Cinematográfica” é algo bom?


Não é de hoje que outras mídias vem influenciando a Literatura e vice-versa. Porém, de  algumas décadas para cá é crescente a influência do Cinema (referindo-se também aos roteiros cinematográficos) e sua linguagem própria sobre o ato de contar histórias por escrito. É bem mais fácil notar este fenômeno em livros mais voltados para um público casual, praticamente os “blockbusters literários”, onde muito mais do que um influência sutil, é possível perceber a intenção total do autor em fazer sua história formar um filme na cabeça do leitor, exatamente como os filmes que se veem na tela grande.

A questão neste fenômeno é: Literatura e Cinema são mídias assim tão semelhantes? Não faria falta a uma obra literária as características que são únicas e exclusivas dessa mídia?  Essa mistura de linguagens é apenas boa, apenas ruim? Aliás, dentro dessa profusão de “livros-roteiros” alguém ainda sabe quais são as possibilidades únicas que a narração ficcional tem?

Até onde “Literatura Cinematográfica” é algo bom?
Literatura de ficção é um formato de expressão assim como o Teatro, Cinema e Quadrinhos, sendo um dos mais antigos entre estes. Cada uma dessas linguagens possui uma série de signos e significados próprios que podem ser aplicados em sua execução.

O que roteiros e filmes podem fazer que livros não?
É preciso ter bem claro o viés visual que o Roteiro possui por natureza. Em um roteiro não se descreve nada que não seja visível, e mesmo este é retratado da forma mais sucinta o possível, em detrimento do objeto principal dessa forma de escrita: as Ações.

Em um filme propriamente dito, outros recursos são aderidos sobre as descrições e falas de um roteiro. Ângulos de câmera, trilha sonora e efeitos de pós-produção ajudam a pontuar o ritmo e clima que a trama segue. Ainda que, fundamentalmente, o ritmo das ações seja determinado pelo roteiro, essas ferramentas são de grande valia na hora de alcançar os sentidos (visual e auditivo) do expectador.

Ainda que seja possível reproduzir toda a sorte de ações complexas mostradas na tela do cinema em forma de narração, é um labor em demasia traduzir algumas sequências que duram poucos minutos para palavras sem pecar na agilidade e intenção. Além disso, como uma linguagem visual, o cinema é capaz de utilizar-se de diversos recursos gráficos que não possuem tradução em palavras (algo semelhante ao que é possível fazer com quadrinhos). Ou seja, nem sempre tentar reproduzir na Literatura o que se pode fazer com o básico da arte cinematográfica.

O que livros podem fazer que roteiros não?
Enquanto o roteiro é uma mídia voltada para o visual a Literatura está  mais voltada para o plano Racional e mesmo Subjetivo de uma trama.

Em um livro é possível haver passagens rápidas, contadas ao leitor, intercaladas com outras mais lentas, onde os acontecimentos são “mostrados” através da narrativa sequencial. Saber quando e como empregar essas duas formas de narrativa é um dos segredos para uma literatura bem sucedida e merece ser objeto de estudo de modo mais aprofundado.

Porém um dos maiores pilares de diferença da Literatura para o Cinema está em um plano mais íntimo. Isso porque na Literatura é possível mergulhar no mais profundo dos pensamentos e sentimentos dos personagens de maneira ímpar. Algo que só consegue ser mais aproximadamente emulado nos quadrinhos, através de recursos gráficos complexos e subjetivos com tais objetivos.

Desde que aprendemos a falar nossos pensamentos passam a ser expressos através de um fluxo contínuo de palavras. Um diálogo interior que muitas vezes é anacrônico e mesmo multifacetado. E é essa característica que torna a narração literária de um fluxo de pensamento e sentimentos muito mais “realista” para alguém lendo um livro (ou seja, reverberando no primeiro plano do consciente as palavras escritas pelo autor) do que quando se vê e mesmo se escuta o lamento de um personagem em uma projeção cinematográfica ou encenação teatral onde, por mais verossímil que seja a atuação do artista, tudo ainda ficará sujeito à capacidade de empatia visual do expectador.

Na Literatura, mais do que em qualquer outra mídia, devido às suas características únicas, é possível para o expectador/leitor SER e SENTIR o personagem. Ainda que nosso cérebro tenha a capacidade extraordinária da projeção dos nossos sentimentos de maneira tão nítida para figuras exteriores ao nosso corpo, como um personagem diante dos nossos olhos, conseguir acesso aos pensamentos e sensações físicas de uma personagem como é possível através da escrita é algo ainda pouco provável em outros formatos.

Influências podem ser boas
Não há de se pensar também que características cinematográficas são algo totalmente nocivo para a boa Literatura. Dependendo do contexto, do objetivo da obra e do público visado, possuir características que relembrem o Cinema, pode ser algo extremamente positivo para a literatura ficcional.

Para compreender isto é preciso ter algo bastante claro nos pensamentos: Literatura não existe para uma única função ou propósito. Tanto aquela considerada como “Boa Literatura”, como clássicos e obras mais conceituais e profundas, não tem nada mais especial do que um bom livro de ficção policial ou uma série adolescente. Ainda que seja possível sim perceber uma maior qualidade técnica ou mesmo um maior valor moral em determinadas obras, isso em nada denigre a função de obras que visam o entretenimento.

Este aliás é um tópico delicado e que merece ser tratado com mais profundidade em particular. Mas é possível neste momento explicitar algo que deveria ser (mas infelizmente não é) de conhecimento comum: Entretenimento é uma necessidade humana primária, assim como a busca por conhecimento é um instinto primário. É muito comum se incorrer em erro quando se julga material de Entretenimento, como se este fosse algo “menor” ou “menos importante”.

Quando uma obra literária se utiliza de nuances de outras mídias como o Cinema (e mesmo outras) isto não significa necessariamente que esta Literatura está “se rebaixando” a outra coisa (até porque não existe mídia mais relevante, ou significante, do que outra). Ela está somente agregando a si características exteriores, o que pode criar algo muito rico. Além disso é também extremamente comum que as outras mídias busquem na Literatura características para adicionar ao seu leque de capacidades.

Um exemplo

Gostaria de dar um exemplo de obra literária que utiliza recursos únicos que tornam sua leitura muito mais interessante do que poderia ser feito em qualquer outro formato. Porém, em vista de não revelar detalhes do enredo, irei apenas citar essa obra e tentar aguçar um pouco a curiosidade para que se confira em pessoa este elemento ao qual faço referência.

“O Assassinato de Roger Ackroyd”, de Agatha Christie, é um dos seus romances mais famosos, considerado por muito a sua obra-prima. Uma trama policial, onde o consagrado personagem Hercule Poirot,  juntamente com o narrador-protagonista, Dr. James Sheppard, investigam o assassinato do personagem-título.

Sem entrar em detalhes é preciso apenas dizer que a “grande sacada” desse livro foi tão impactante que ficou conhecida como um marco dentro do gênero e mesmo dentro da Literatura da época. Um marco que só foi possível graças à capacidade da autora em manipular a característica subjetiva que apenas a narração Literária é capaz (mais uma vez enfatizo que tal tipo de experimento só seria possível com impacto semelhante na mídia de Quadrinhos, ainda que não do exato modo feito por Agatha em sua obra).

Resumindo. . .

Não há nada de errado em fazer “Literatura Cinematográfica” se esse for seu objetivo. Porém, nunca renuncie totalmente à gama gigantesca de possibilidades da Literatura sem ter certeza de que é isto que sua obra de fato necessita.

Lilian K. Mazaki


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